05 Dezembro 2019
"Como parece claramente, Lafont exercita responsavelmente a tarefa de "pensar" a que o teólogo é chamado, todo teólogo. O espaço para o pensamento, mesmo diante dos textos de maior autoridade, permanece para o teólogo um objeto de dever: uma vez que os fatos, mesmo com toda a sua autoridade, nunca são, enquanto tais, razões suficientes", escreve Andrea Grillo, em artigo publicado por Come se non, 27-11-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Andrea Grillo é teólogo italiano, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua.
No contexto de uma pequena obra ("Un cattolicesimo differente", EDB, 2019), no qual Ghislain Lafont apresenta a "última versão" de sua preciosa síntese teológica, o monge francês propõe algumas páginas intensas, explicitamente dedicadas ao tema da autoridade feminina na Igreja, elegantemente intitulado (em tradução livre) Nota sobre o chamado das mulheres ao carisma do governo. Para entender bem o texto, encontrado no final do terceiro capítulo, e pouco antes das conclusões, é preciso ter pelo menos uma ideia do que o precede. Por isso, gostaria de expor em síntese extrema o conteúdo fundamental da obra (1), para depois examinar em detalhes as passagens dedicadas à ordenação feminina (2), que tratam da questão da forma (3), da verdade "infalível" (4) e da referência à Virgem Maria (5). Não é difícil entender que se trata de um texto muito precioso que desenvolve hoje um sério debate sobre a posição das mulheres na Igreja.
A obra, como diz o autor na Introdução, é uma reflexão sobre quatro elementos que caracterizam um catolicismo diferente em relação àquele clássico. Esses elementos, formalmente inaugurados pelo Concílio Vaticano II, são: o sacrifício não é uma prática ligada ao mal, mas à natureza própria da realidade e ao amor que é a sua verdade; a eucaristia não é uma repetição do único sacrifício, mas sua "memória ativa"; o ministério na Igreja é um dom do Espírito Santo, enraizado em um carisma específico; o nome de Deus mais em conformidade com o Evangelho é Amor em excesso, ou Misericórdia. Com base nessas quatro novidades, o texto se desenvolve em três partes: na primeira parte, partindo exatamente desse "amor original", é apresentado o "novo sistema", que na segunda parte é comparado com a apresentação "clássica" da fé cristã , para chegar, na terceira parte, a configurar o "bom uso da Eucaristia" e o "bom uso da autoridade" como critérios de identidade da Igreja contemporânea. Neste contexto do terceiro capítulo, encontramos as páginas que gostaria de apresentar agora com maior precisão.
Lafont "não sem um certo temor" enfrenta a questão da ordenação de mulheres. Por um lado, reafirma que a posição da Santa Sé parece clara e definida, excluindo esse tipo de ordenação, porque o próprio Jesus a teria excluído e a Igreja não teria o poder de mudar sobre esse ponto. Mas para o autor, apesar de tudo isso, há espaço para um "exercício escolar", sem reivindicar consequências operacionais imediatas, nas quais, no entanto, se possa exercitar o pensamento e testar os dados históricos e sistemáticos da tradição católica.
O primeiro ponto em que Lafont aplica seu próprio pensamento é uma questão "formal" que pode se tornar substancial. A propósito da Carta Apostólica Ordinatio sacerdotalis, o autor se pergunta: "Por que João Paulo II não se expressou com toda a clareza desejável? Por que ele não adotou as formas canônicas de uma definição doutrinal?"(63). Ao contrário do que foi feito pelo Papa Pio IX e pelo Papa Pio XII, para a definição de Imaculada e da Assunção, João Paulo II adotou "uma carta que certamente contém um texto muito forte, mas que não é uma definição dogmática" (64). Nesse caso, não se trata de uma questão secundária. "Quando se trata de uma definição que implica a obrigação de acreditar, sob pena de ser separado da Igreja, o legislador está moralmente obrigado a uma total clareza, tanto no enunciado do que deve ser acreditado quanto na declaração de autoridade. O magistério não tem o direito de deixar passar um vício formal. A forma ex-cathedra não é facultativa"(64). Se é verdade que existe um magistério definitivo também do magistério ordinário, é igualmente verdade que muitas dessas decisões, que se acreditava serem irreformáveis, e que talvez tenham sido úteis em seu tempo, perderam sua autoridade. "Quaisquer que tenham sido as intenções pessoais de João Paulo II, permanece o fato de que, não tendo utilizado a forma solene, deixou a porta entreaberta a pesquisas teológicas destinadas a solucionar as dúvidas que continuam a subsistir" (64).
No entanto, após essa pergunta de natureza formal, Lafont coloca uma segunda questão, ainda mais decisiva: "é possível, em uma matéria em que a história está envolvida, chegar uma verdade infalível?" (65) . O problema não é simples, mas é claro que a "verdade prática" e a "verdade histórica" não são de forma alguma compreensíveis de forma definitiva. O juízo sobre o "sujeito feminino" não pode ser objeto de uma "definição", precisamente porque tal sujeito não é determinado apenas por um perfil natural, mas tem uma história, que nasce de um processo de autocompreensão e de desenvolvimento que não pode ser antecipado abstratamente ou universalmente. Um exemplo, apresentado oportunamente por Lafont, parece útil para entender melhor essa perspectiva. De fato, ele apresenta um texto de Pio XII, de 1957, no qual o Papa atribuía "à vontade de Jesus" o fato de ter dado aos apóstolos "um poder duplo", isto é, o poder da ordem e o poder da jurisdição. Lafont observa que essa "doutrina", considerada então irreformável, foi substituída menos de dez anos depois pelo Concílio Vaticano II por uma leitura completamente diferente, que reconduzia cada autoridade de volta à ordenação e fazia do episcopado a plenitude do sacramento.
Este exemplo parece lançar luz sobre a questão da "autoridade feminina". De fato, Lafont escreve com grande clareza:
“Na atual escassez de padres, acontece de confiar a mulheres grandes responsabilidades, no passado próprias dos sacerdotes, pois agora se compreende que podem ser exercidas por leigos ou por religiosas. Mas acontece que se confiem a eles paróquias, ou seja, comunidades cristãs inteiras. Em outras palavras, confere-se a elas um 'poder de jurisdição' (mesmo sob a responsabilidade nominal de um eclesiástico) sem o poder de ordem correspondente e elas podem fazer tudo na Igreja, exceto celebrar o sacrifício espiritual de sua comunidade, o que será feito, quando for encontrado, um sacerdote proveniente de outro lugar e sem nenhuma ligação com a comunidade. Retorna-se assim à dicotomia clássica? Confere-se a elas uma missão sacramental, mas sem o sacramento e a graça que lhes são inerentes"(66-67).
É claro que a precariedade dessas soluções, que reintroduzem distinções antigas apenas no caso de "sujeito feminino", mais que remédios aparecem problemas adicionais. Que deixam as questões básicas sem solução e, portanto, não saem do embaraço.
Mesmo a referência a Maria não é de forma alguma decisiva. Maria é absolutamente única e um modelo para todos, para homens e mulheres. "A sua inteligência, a sua força e a sua missão são incomparáveis; ela é de uma ordem diferente. É um modelo para todo cristão, homem ou mulher. A missão das mulheres cristãs é encontrada em outro lugar e o não sacerdócio de Maria não me parece de forma alguma exemplar para as mulheres enquanto mulheres. Receio esteja sendo proposta uma imagem holográfica piedosa de pobre-pequena-jovem-mulher-do-lar às mulheres em um ambiente rural de outros tempos "(67). Portanto, não é em uma abstrata composição de "princípio petrino" e de "princípio mariano" que se poderá abordar realmente a questão da autoridade das mulheres na Igreja.
Só resta uma conclusão:
"Se o sacerdócio é um carisma reconhecido e ordenado, quem pode decidir que as mulheres não podem ter esse carisma? Na Igreja Católica, devemos acreditar que o próprio Jesus excluiu as mulheres desse carisma? Nem homens nem mulheres são sacerdotes no sentido sacrificial do Antigo Testamento. O próprio Jesus não o era ... Jesus é o único sacerdote de seu sacrifício único. A Igreja que é seu corpo entra nesse sacrifício. Os cristãos deste corpo são chamados a servir esse sacrifício espiritual. Um só senhor, um só mistério pascal. Um só espírito. Eu acredito que não exista lugar para discriminação" (67).
Como parece claramente, Lafont exercita responsavelmente a tarefa de "pensar" a que o teólogo é chamado, todo teólogo. O espaço para o pensamento, mesmo diante dos textos de maior autoridade, permanece para o teólogo um objeto de dever: uma vez que os fatos, mesmo com toda a sua autoridade, nunca são, enquanto tais, razões suficientes. Por essa razão, Lafont lembra uma bela expressão do Card. Martini: “Não tenho medo de pessoas que não acreditam. Eu tenho medo de pessoas que não pensam”. Um uso fácil de uma "teologia da autoridade" sempre corre o risco de reduzir as razões à mera evidência dos fatos. Isso, como diz São Tomás de Aquino, não é isento de riscos: "Se resolvermos os problemas da fé apenas com o método da autoridade, certamente possuiremos a verdade, mas em uma cabeça vazia". Se o consentimento à exclusão da mulher do ministério ordenado tivesse que ter, como preço, a opaca certeza de "cabeças vazias", teríamos obtido um pequeno ganho a curto prazo, que logo acabaria se invertendo, quam celerrime, em uma grave perda ou talvez em um atraso quase irrecuperável.
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Ghislain Lafont sobre a ordenação de mulheres: “Não há lugar para a discriminação” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU